Reflecting My Grace de Calida Rawles
E mais: as mulheres Impressionistas e as novidades do mundo da arte
Queridos assinantes,
esta é a última edição de ArteLetter neste ano de 2024. Estaremos de “férias” durante o próximo mês de dezembro e voltaremos em janeiro de 2025. ArteLetter foi publicada pela primeira vez em 31/03 deste ano com apenas quatro assinantes, sendo duas delas essas que vos escrevem. De lá pra cá, 34 edições foram publicadas, ao longo das quais mais de 300 assinantes se juntaram a nós e foram essenciais para nos incentivar a seguir escrevendo e publicando. Por isso, nosso muito obrigada a cada um de vocês! Durante essa pausa, vocês podem revisitar (ou ler pela primeira vez) algumas dessas edições; elas estão disponíveis aqui.
Desejamos que tenham um excelente final/início de ano e que possamos, a partir do ano que vem, seguir nossa jornada de apreciação e aprendizado da arte.
Um abraço afetuoso,
Chris e Lu
A edição de hoje traz a obra Reflecting My Grace (2019), da artista americana Calida Rawles (1976). As pinturas de Rawles são uma combinação de hiper-realismo e abstração poética. Seu processo de criação é composto por duas etapas: primeiro, ela fotografa os modelos (frequentemente pessoas próximas, como suas filhas), muitas vezes submersos ou parcialmente imersos em água, capturando detalhes como a interação entre os corpos, a luz e as ondulações aquáticas; segundo, ela utiliza essas imagens fotográficas como referência para suas pinturas(majoritariamente tintas acrílicas sobre tela), permitindo que ela construa composições altamente detalhadas e hiper-realistas, que posteriormente incorpora elementos abstratos e poéticos.
Sua técnica envolve a criação de camadas translúcidas que capturam texturas, refrações e ondulações aquáticas, conferindo um efeito etéreo e tridimensional às composições. Rawles frequentemente retrata figuras negras em meio a ambientes aquáticos, onde a água assume consiste num elemento alegórico utilizado para evocar narrativas simbólicas de cura, resiliência e transcendência.
Reflecting My Grace (2019) é uma das imagens da série A Dream for my Lilith, na qual Rawles reinterpretou a história de Lilith, a primeira esposa de Adão, que foi demonizada por se recusar a se submeter a ele. Assim como as demais imagens da série, Reflecting My Grace retrata uma figura soberana que emerge das águas, simbolizando rebeldia. Influenciada também por escritoras negras contemporâneas e suas abordagens interseccionais, nesta obra Rawles pinta uma Lilith negra em vestido branco, flutuando com graciosidade em um ambiente de calma e alívio espiritual, afastadas de julgamentos, perseguições e traumas geracionais. Com olhos fechados e postura serena, ela irradia na luz refratada das águas azuis, em um momento de lazer e deleite.
A carreira de Rawles teve início no final dos anos 1990 e, de lá pra cá, ela realizou exposições individuais em instituições como o Pérez Art Museum Miami (2024), The Delaware Contemporary (2024) e Lehmann Maupin em Nova York (2023 e 2021). Seu trabalho também integrou diversas exposições coletivas, incluindo a 12ª Bienal de Berlim de Arte Contemporânea (2022) e "Black American Portraits" no Los Angeles County Museum of Art (2021). Além disso, suas obras fazem parte de coleções públicas e privadas, como o Dallas Museum of Art, Los Angeles County Museum of Art e Pérez Art Museum Miami. Se você quiser conhecer outros trabalhos dessa artista, visite o site oficial ou o perfil no Instagram.
📄 Mudando de assunto…
Encerramos o mês com nosso último capítulo sobre o movimento Impressionista, que, com sua potência, ainda hoje influencia nosso senso estético na arte.
Hoje, destacamos o papel artístico das mulheres no Impressionismo. Com estilos inovadores, elas foram reconhecidas por seus pares e críticos em sua época, mas, ao longo da história da arte, muitas vezes foram esquecidas. O registro histórico privilegiou as trajetórias dos renomados pintores homens, enquanto a produção das mulheres artistas foi frequentemente relegada a uma posição secundária.
Entre as pintoras que aderiram ao Impressionismo, e estão ligadas ao círculo mais íntimo do movimento, estão Berthe Morisot, Mary Cassatt, Marie Bracquemond e Eva Gonzalès.
Morisot, Cassatt e Bracquemond ganharam destaque na história da arte em 1928, quando o crítico Henri Focillon as descreveu como Les Trois Grandes Dames ou “As Três Grandes Damas” do Impressionismo.
Essas artistas produziram obras tão inovadoras quanto as de seus colegas homens. Apesar de suas biografias distintas, todas superaram obstáculos significativos para contribuir com o desenvolvimento do movimento. Ao moldarem suas carreiras e estilos únicos, enfrentaram não apenas desafios pessoais, mas também as barreiras impostas pelas normas sociais da época.
Neste texto, nos concentraremos na obra de cada uma dessas artistas. Contudo, é fundamental observar alguns aspectos do contexto social em que elas viveram.
No final do século XIX, uma mulher de classe alta que vivia em Paris estava submetida a um rígido código de regras sociais. Por exemplo, uma mulher solteira não podia sair de casa sem acompanhante, frequentar cafés ou ir ao teatro sozinha, sob o risco de comprometer sua reputação. Como resultado, as mulheres eram incentivadas a desenvolver interesses em artes decorativas, música ou pintura, atividades que poderiam ser realizadas em companhia de outras mulheres. Esses esforços eram vistos como formas de auto-aperfeiçoamento, e não como caminhos para uma carreira.
Comparado a movimentos anteriores, caracterizados por grandes telas com temas heróicos, históricos ou religiosos, o estilo impressionista se mostrou especialmente adequado para as pintoras. O menor tamanho das telas facilitava o transporte e a pintura ao ar livre (en plein air). Os temas menos formais, como “instantâneos” da vida cotidiana - retratos de família, crianças, amigos e paisagens do jardim ou do campo -, se integravam facilmente ao ambiente cotidiano dessas mulheres.
Berthe Morisot (1841–1895)
Sem dúvida a Impressionista mais conhecidas, Morisot se destacou pela dedicação à pintura da vida moderna.
Ela foi a única mulher a expor na primeira Exposição Impressionista e participou de sete das oito exposições subsequentes do movimento. Casada com o irmão de Édouard Manet e amiga íntima de Renoir, tornou-se uma das integrantes mais prolíficas do círculo Impressionista. Seu amor por pintar ao ar livre (en plein air) permaneceu ao longo de sua carreira, e sua filha Julie foi uma de suas modelos favoritas.
Como um crítico observou na época, “sua pintura tem toda a franqueza da improvisação; é realmente a impressão capturada por um olhar sincero e precisamente reproduzida por uma mão que não trapaceia.”
A obra acima foi exibida pela primeira vez na quinta Exposição Impressionista, em 1880, e faz parte de uma série de pinturas em que Morisot retrata momentos íntimos de mulheres se arrumando. Além de refletir suas próprias experiências cotidianas, a pintura dialoga com obras de artistas Impressionistas homens, como Edgar Degas, Auguste Renoir e Édouard Manet, que também capturavam cenas de intimidade feminina, muitas vezes com uma carga erótica mais evidente.
Em Mulher em sua Toalete, a intimidade é apresentada de forma contida e respeitosa. A figura feminina, de costas para o observador, evita o olhar direto e preserva sua privacidade. A composição transmite sofisticação e elegância, com elementos como pérolas, cetim, pétalas de flores e um penteado meticulosamente arrumado, além de exalar feminidade através da predominância de tons pastéis de lavanda, rosa, azul, cinza e branco. Esses aspectos remetem ao estilo rococó, inspiração evidente em Morisot, que era influenciada pelos trabalhos de Jean-Honoré Fragonard (1732–1806), seu tio-bisavô materno.
Mary Cassatt (1844–1926)
Nascida em Pittsburgh, Pensilvânia, Mary Cassatt destacou-se como a única americana no círculo Impressionista. Após estudar pintura na Academia de Belas Artes da Pensilvânia e em diversas cidades da Europa, estabeleceu-se definitivamente em Paris, em 1875. Lá, tornou-se amiga íntima de Edgar Degas e participou de quatro Exposições Impressionistas.
Cassatt, influenciada pelo movimento feminista iniciado nos Estados Unidos a partir de 1848, rejeitou as expectativas tradicionais de casamento e maternidade, optando por uma vida independente e uma carreira artística bem-sucedida. Suas obras, marcadas por uma abordagem inovadora, retratavam mulheres como sujeitos, e não como objetos. Embora seja mais conhecida por seus retratos de mães e filhos, Cassatt inicialmente explorou o mundo das interações sociais íntimas, antes de se concentrar nos laços profundos entre adultos e crianças.
Menina na Poltrona Azul é considerada a estreia oficial de Cassatt no movimento Impressionista. Rejeitada no Salão de 1878, a obra ganhou reconhecimento quando Degas a convidou para participar do grupo. No ano seguinte, a pintura integrou a Quarta Exposição Impressionista.
A modelo desta obra é a filha de amigos de Degas. Utilizando um tom dominante de turquesa profundo, Cassatt explora o universo feminino desde a infância. A composição apresenta uma menina esparramada em uma poltrona azul no primeiro plano, em uma sala onde outras três poltronas idênticas. A menina olha para o chão à sua frente, demonstrando aparente desinteresse em ser retratada; seu semblante sugere cansaço e tédio. À frente da menina, um pequeno cão cochila, criando uma mancha escura que equilibra os tons de sua roupa e com os tons neutros da sala, iluminada por grandes janelas ao fundo.
A composição como um todo é marcada pela ambiguidade. A sala, organizada e sem acessórios, transmite uma atmosfera de impessoalidade. As roupas da menina, impecáveis e dentro dos padrões rígidos da época, reforçam esse contexto formal. No entanto, a cena rompe com essas normas: a menina, displicentemente jogada na poltrona, exibe uma atitude rebelde para os padrões da época, desinteressada tanto pelo ambiente quanto pelos observadores. Por meio dessa representação, a artista sinaliza seu desejo de explorar as tensões entre os papéis tradicionais impostos às mulheres e uma nova visão de liberdade e individualidade.
Marie Bracquemond (1840–1916)
A trajetória de Marie Bracquemond como pintora, ceramista e gravurista é marcada por resiliência e determinação diante de desafios pessoais e sociais. Diferentemente de suas contemporâneas Cassatt e Morisot, Bracquemond teve origem em familiar abastada e, por tanto, as mesmas oportunidades. Autodidata em grande parte de sua formação, ela enfrentou o preconceito da sociedade e até mesmo de seu próprio marido.
Detentora de um talento nato, Bracquemond teve um de seus quadros aceitos no Salão de Paris em 1857, o que impulsionou sua carreira. Nesse período, ela estudou sob a orientação de Jean-Auguste-Dominique Ingres (1780–1867). No entanto, a austeridade e o ceticismo de Ingres em relação à capacidade feminina na arte a levaram a buscar outros tutores. A partir de 1864, ela começou a participar regularmente dos Salões.
Em 1869, casou-se com Félix Bracquemond, pintor, ceramista, gravurista e pioneiro do japonismo na Europa, já renomado no meio artístico e participante da primeira Exposição Impressionista de 1874.
Marie participou da Exposição Universal de 1878 com um grande painel de cerâmica que chamou a atenção de Edgar Degas. A partir desse contato, mediado também por seu marido, ela se inseriu no círculo Impressionista. Sua prática artística então evoluiu do rígido formalismo e realismo até abraçar o Impressionismo. Participou das Exposições Impressionistas de 1879, 1880 e 1886. Nesse último ano, conheceu Paul Gauguin, cuja influência foi decisiva em sua produção artística.
Apesar da oposição de seu marido, Marie Bracquemond persistiu em sua paixão pelo Impressionismo. Seu trabalho, caracterizado pelo uso vibrante de cores e composições inovadoras, reflete seu comprometimento com os ideais do movimento e sua luta pela liberdade criativa. No entanto, a desaprovação de Félix Bracquemond culminou na interrupção de sua carreira artística em 1890, quando a tensão conjugal tornou insustentável sua dedicação à pintura.
A Dama em Branco foi uma das três pinturas de Bracquemond exibidas na Quinta Exposição Impressionista, em abril de 1880. A obra retrata Louise Quivoron, meia-irmã da artista, que frequentemente posava como modelo em suas pinturas.
Como muitos Impressionistas, Bracquemond trabalhou nesta obra ao ar livre, em seu jardim em Sèvres, mas a composição foi cuidadosamente planejada, com esboços preliminares, refletindo a influência clássica de sua formação. O tema da figura em um jardim era recorrente no Impressionismo, permitindo às mulheres artistas da época certa autonomia para pintar ao ar livre dentro dos limites culturais impostos.
A pintura, de tamanho real, apresenta a modelo sentada sobre um tapete estampado colocado na grama, com as mãos cruzadas no colo. A figura está voltada de perfil três quartos para a esquerda, enquanto encara o observador com um olhar frio e distante. O fundo é preenchido por uma vegetação exuberante, formando um halo ao redor do tronco e da cabeça da modelo.
O vestido branco da modelo destaca-se como um elemento central da composição, refletindo a obsessão de Bracquemond em explorar as nuances da cor branca, a atmosfera e as mudanças da luz do sol. A obra exemplifica sua habilidade técnica e seu compromisso em desafiar os limites artísticos e sociais de sua época.
Eva Gonzalès (1849–1883)
Gonzalès veio de uma família artística. Seu pai era escritor, sua mãe era musicista e através deles ela conheceu uma variedade de membros da elite cultural parisiense. Desde jovem, foi exposta às novas ideias em torno da arte e da literatura da época. Começou a ter aulas de arte quando tinha 16 anos. Poucos anos depois, conheceu Édouard Manet, se tornou sua modelo e única aluna formal, e muitas vezes foi criticada por fazer trabalhos muito semelhantes aos dele. Em 1870, ela expôs suas obras no Salão de Paris. Ela nunca expôs com os Impressionistas, mas era considerada um membro de seu círculo por seu estilo de pintura. Embora a carreira de Eva Gonzalès tenha sido interrompida por sua morte repentina aos 34 anos, ela se tornou conhecida por seu estilo característico de retratos. Ela incluiu emoção sutil e riqueza de detalhes em suas obras, como A Loge in the Théàtre des Italiens (1874), descrita como uma das pinturas mais provocativas de sua época e apresentada no Salão de 1879.
Emoldurada pelo exuberante veludo vermelho e as borlas douradas da cortina, além do apoio de mão ligeiramente curvado, a irmã da artista, Jeanne Gonzalès, está sentada em um camarote no Théâtre des Italiens. Ao seu lado, em pé, encontra-se Henri Guérard, o homem com quem Eva se casaria mais tarde.
O casal parece emocionalmente distante: o homem está de perfil, enquanto Jeanne adota uma postura frontal, com um grande par de binóculos de ópera em uma das mãos. Sua expressão combina alerta e serenidade, sugerindo o tipo de fascínio que se experimenta durante uma apresentação arrebatadora. Suas mãos repousam, transmitindo uma entrega calma ao momento, enquanto Guérard, perpendicular a ela, inclina-se para trás com o cotovelo apoiado no descanso de veludo, em uma linguagem corporal que reflete introspecção e distanciamento.
O tema do camarote era um dos preferidos dos impressionistas. Além da moldura natural que o espaço oferece, ele possibilita uma exploração de contrastes intrigantes, como artifício versus natureza, aparência versus realidade e, sobretudo, o espetáculo da vida moderna — uma preocupação central dos impressionistas. O camarote é um espaço ambíguo, simultaneamente público e privado, onde os ocupantes assistem e são assistidos, refletindo o dinamismo social da Paris do século XIX, onde até mesmo as ruas se tornavam palcos e os transeuntes, atores.
No entanto, dentro do camarote, os ocupantes são retirados do caos da multidão e transportados para um espaço mais privilegiado, associado à riqueza e ao status social. Por essas razões, o tema certamente atraía a burguesia aspirante, e um artista atento teria em mente a possibilidade de comercializar uma obra com essas características.
Outro aspecto interessante do camarote é a sugestão de narrativas que transcendem a cena representada. As direções dos olhares das figuras, por exemplo, levantam questões intrigantes. Imaginando o camarote levemente à esquerda do palco, os olhos de Jeanne parecem fixos na performance, enquanto Guérard olha na direção oposta. O que está capturando sua atenção? Seria o público? Talvez algum acontecimento no corredor, já que era comum que as portas dos camarotes permanecessem abertas durante as apresentações, permitindo interações sociais fora da sala principal?
Independentemente da interpretação, esses olhares divergentes permanecem misteriosos. Eles podem sugerir um comentário sobre o relacionamento entre os dois, indicando que estão emocionalmente em direções opostas. Alternativamente, podem oferecer uma reflexão mais ampla sobre os papéis de gênero na sociedade parisiense do século XIX: o homem, voltado para o mundo exterior, engajado no entorno, enquanto a mulher assume uma postura introspectiva e quase ritualística.
As flores que adornam o camarote, perfeitamente combinadas com o vestido e os acessórios de Jeanne, intensificam essa ideia de exibição e ornamentação. A cadeira vazia ao lado dela pode simbolizar sua disponibilidade, deixando no ar um leve mistério sobre o cenário e suas implicações sociais e culturais.
Essas quatro mulheres não apenas capturaram a beleza do cotidiano com seus pincéis, mas também deixaram marcas profundas que ressoam até hoje. Elas nos lembram que o ato de criar, de persistir e de expressar a própria visão do mundo é um caminho poderoso de resistência e de conexão com o que nos torna humanos.
👀 Arte em Pauta
Uma balsa foi transformada em centro de cultura flutuante e levará arte pelos rios da Amazônia.
De autoria de Lelia Lofego, com ilustrações de Sofia Rodrigues Barbosa, Arte Contemporânea em Brasília para Crianças acaba de ser lançado.
De novo a banana presa na parede com fita adesiva!! Dessa vez, ela foi vendida em leilão da Sotheby’s por US$ 6,2 milhões, na última quarta-feira (20), para o empresário de criptomoedas Justin Sun.
Com 100 galerias participantes, a Abu Dhabi Art 2024, que termina hoje, é uma sucesso tão grande que já correm rumores de que ela pode se tornar mais uma edição da Art Basel em 2025.
E para encerrar nossa temporada sobre Impressionismo mostrando que, 150 depois, ele ainda está com tudo, a Sotheby’s acabou de leiloar uma das para Nymphéas de Monet por US$ 65,5 milhões (com taxas).